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Foto do escritorGleyce Amaral

Direitos autorais e acesso das Pessoas com Deficiência: para lá de Marrakesh

O acesso a leitura é primordial para educação, sem ela, não é possível que a transformação do intelecto humano aconteça. E isso não é diferente para pessoas com quaisquer tipo de deficiência, seja ela visual, motora ou cognitiva. Em 2021, após anos de espera, foi finalmente publicado no Diário Oficial da União o Decreto nº 10.882/2021 que regulamenta parte do disposto no Tratado de Marraqueche quanto à viabilização do compartilhamento internacional de obras literárias em formato acessível às pessoas cegas, com deficiência visual ou com outras dificuldades de leitura.




  • A importância do Tratado de Marraquexe

O tratado, adotado em 2013 pelos Estados-membros da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) e promulgado, no Brasil, pelo Decreto nº 9.522, de 8 de outubro de 2018, tem como objetivo combater a fome de livros[1], a carência de livros, revistas e outros materiais em formatos acessíveis voltados para pessoas com deficiência visual. Proposto pelo Brasil, Equador e Paraguai, o texto foi baseado em redação da União Mundial de Cegos. Posteriormente, tornou-se uma ação conjunta entre as delegações do Brasil, do Paraguai, do Equador, da Argentina e do México, apoiada pelo grupo de países da América Latina e do Caribe. E, vale destacar, foi o primeiro tratado sobre limitações e exceções aos direitos autorais em âmbito multilateral internacional.

Além de deixar claro a obrigatoriedade de harmonização da proteção por direitos autorais com a efetivação de outros direitos fundamentais, como o direito de acesso, a grande contribuição desse tratado é permitir que os países signatários adotem o intercâmbio transfronteiriço dessas obras por intermédio de entidades autorizadas. De acordo com a Federação Internacional de Associações e Instituições de Bibliotecas (IFLA, na sigla em inglês), “ao eliminar as barreiras legais para criar e compartilhar obras em formato acessível, [o Tratado de Marraqueche] aumenta imediatamente a quantidade de material de leitura disponível para os usuários com dificuldade de acesso ao texto impresso”. Ainda, acrescenta a IFLA, “economiza tempo, dinheiro e esforço das bibliotecas, uma vez que podem reunir os recursos disponíveis no país ou mesmo em nível internacional e permite às bibliotecas coordenarem a produção de obras, o que resultará em menos duplicação de esforços, evitando que um mesmo livro seja convertido várias vezes no mesmo idioma em diferentes países”. Segundo a União Global de Cegos, menos de 10% dos livros publicados são acessíveis para pessoas cegas ou com visão parcial[2]. Este percentual é ainda menor em países em desenvolvimento ou em idiomas de menor presença.


Decreto regulariza o Tratado de Marraquexe


O decreto federal publicado em dezembro de 2021 trata exclusivamente das questões relacionadas ao intercâmbio transfronteiriço. Importante destacar que a opção do governo brasileiro — inclusive na contramão da proposta de minuta de decreto apresentada em consulta pública — foi de obrigação de autorização prévia de entidades para realizarem a importação de obras adaptadas para necessidades de pessoas com deficiência visual. Estas entidades deverão sê-lo por ato administrativo do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) e, a partir de então, poderão importar exemplares em formatos acessíveis apenas sem a necessidade de autorização do titular do direito autoral sobre a obra, desde que para proveito exclusivo dos referidos beneficiários.

Tais entidades autorizadas deverão verificar e garantir acesso exclusivo das obras intelectuais às pessoas cegas, com deficiência visual que não possa ser corrigida ou com deficiência física que torne impossível sustentar e/ou manipular um livro, focar ou mover os olhos de forma apropriada à leitura. Além disso, têm a obrigação de manter os registros deste uso, observada a privacidade dos beneficiários, nos termos da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).

O decreto é, entretanto, ainda insuficiente, pois sua realização depende de ato interno do MMFDH sobre forma e prazo de apresentação do requerimento, bem como demais procedimentos administrativos, conforme inclusive expresso na cartilha Entenda o Tratado de Marraqueche”. Ou seja, o decreto é importante, mas tardio e incompleto, deixando transparecer que a intenção seja prorrogar a resolução e não resolver a questão.


Para lá de Marraqueche


Na mesma toada, em 6 de dezembro de 2021, foi encaminhada ao Congresso a Mensagem nº 659, de 3 de dezembro de 2021, com o Projeto de Lei 4315/2021 cujo objetivo é ampliar as limitações em favor do acesso a obras publicadas às pessoas cegas, com deficiência visual ou com outras dificuldades para ter acesso ao texto impresso. O PL enviado pelo Executivo altera a Lei de Direitos Autorais para permitir a reprodução, a adaptação, a distribuição, a comunicação ao público, a colocação à disposição do público e quaisquer outras modalidades de utilização de obras em forma de texto, de notação ou de ilustrações conexas, por meio de formatos acessíveis que possibilitem a sua plena fruição, desde que não haja fins lucrativos e os formatos acessíveis sejam destinados exclusivamente às pessoas com deficiência visual ou com dificuldade para perceber, manusear ou ler textos.

Nesse PL o governo opta novamente por não resolver, avançar e ir além das deficiências exclusivamente visuais e incluir expressamente na Lei de Direitos Autorais a acessibilidade a todas as pessoas com deficiência, quaisquer que sejam. Acontece, porém, que o ordenamento jurídico já assegura o direito de acesso a obras protegidas em formato acessível a quaisquer pessoas com deficiência.

Não só em razão de, mas também por conta da Convenção de Nova York sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, ratificada em 2008 com status de emenda constitucional, e que estabelece a obrigação de o país garantir a disponibilidade de bens culturais em formatos acessíveis. À convenção se soma a promulgação do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/15), que impõe a obrigação de fornecimento de obras em formato acessível a pessoas com quaisquer deficiências (art. 42). Além, claro, do próprio status constitucional e como direito fundamental do próprio Tratado de Marrakesh.

No entanto, é pedagógico, elucidador e informativo uma mudança no texto da Lei de Direitos Autorais para refletir com maior precisão a realidade jurídica contemporânea, com força constitucional e imperativa, que se impõe e afeta diretamente a interpretação e aplicação de todas as normas jurídicas vigentes, bem como pauta as ações e limites do Legislativo e Executivo — cuja omissão neste assunto é ensurdecedora. A aprovação do PL, com as necessárias ampliações, é necessária e urgente, ainda que a opção do Executivo tenha sido por absorver apenas parte dos dispositivos do tratado que favorecem a acessibilidade.

Como vemos, o Brasil deu alguns importantes passos para que as disposições do Tratado de Marraqueche sejam colocadas em prática. Mas ainda há necessidade de ações do Executivo e Legislativo. E, mais, de mobilização da sociedade e das entidades cujas características as permitiriam tornarem-se entidades autorizadas. Este ano tem eleições e todos aqueles que trabalham pelo acesso à cultura, conhecimento, informação e pelos direitos de pessoas com deficiência devem perguntar aos candidatos como pretendem trabalhar para a concretização célere, efetiva e eficiente do Tratado de Marraqueche e do direito de acesso de todas as pessoas com quaisquer deficiências.



O termo “fome de livro” foi usado por organizações de pessoas com deficiência ao longo da proposição e debate em torno da criação de um dispositivo de limitações ao direito de autor para ampliar o acesso destes cidadãos aos textos impressos.

[2] WORLD BLIND UNION. Marrakesh Treaty Ratification and Implementation Campaign. Disponível em: <https://worldblindunion.org/programs/marrakesh-treaty/>. Acesso em: 24 jan. 2021.







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